terça-feira, 6 de março de 2018

Conto "Sempre é uma companhia" de Manuel da Fonseca

Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia”

Metas
Linguagem, estilo e estrutura:
Solidão e convivialidade.

Caracterização das personagens.
Relação entre elas.
Caracterização do espaço: físico, psicológico e sociopolítico.
Importância das peripécias inicial e final.
O conto: unidade de ação; brevidade narrativa; concentração de tempo e espaço; número limitado de personagens;
A estrutura da obra;
Discurso direto e indireto;
Recursos expressivos.



António Barrasquinho, o Batola, é um tipo bem achado. Não faz nada, levanta-se quando calha, e ainda vem dormindo lá dos fundos da casa.
É a mulher quem abre a venda e avia aquela meia dúzia de fregueses de todas as manhãzinhas. Feito isto, volta à lida da casa. Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe.
Pois quando entra para os fundos da casa, vem saindo o Batola com a cara redonda amarfanhada num bocejo. Que pessoas tão diferentes! Ele quase lhe não chega ao ombro, atarracado, as pernas arqueadas. De chapeirão caído para a nuca, lenço vermelho amarrado ao pescoço, vem tropeçando nos caixotes até que lá consegue encostar-se ao umbral da porta. Fica assim um pedaço, a oscilar o corpo, enquanto vai passando as mãos pela cara, como que para afastar os restos do sono. Os olhos, semicerrados, abrem-se-lhe um pouco mais para os campos. Mas fecha-os logo, diante daquela monotonia desolada.
Dá meia volta, enche a medida com o melhor vinho que há na venda, coloca-a sobre o balcão. Ao lado, um copo. Puxa o caixote, senta-se e começa a beber a pequenos goles. De quando em quando, cospe por cima do balcão para a terra negra que faz de pavimento. Enterra o queixo nas mãos grossas e, de cotovelo vincado na tábua, para ali fica com um olhar mortiço.
Às vezes, um rapazito entra na venda:
– Tio Batola, cinco tostões de café.
O chapeirão redondo volta-se, vagaroso:
– Hã?... – Cinco tostões de café!
Batola demora os olhos na portinha que dá para os fundos da casa. Mas é inútil esperar mais. “Ah, se a mulher não vem aviar o rapazito é porque não quer, pois está a ouvir muito bem o que se passa ali na loja!” Quando se assegura que é esta e não outra a verdade dos factos, Batola tem de levantar-se. Espreguiça-se, boceja, e arrasta-se até à caixa de lata enferrujada. Mede o café a olho, um olho cheio de tédio, caído sobre o canudinho de papel.
Volta a encher o copo, atira-se para cima do caixote. E, no jeito que lhe fica depois de vazar vinho goela abaixo, num movimento brusco, e de ter cuspido com uns longes de raiva, parece que acaba de se vingar de alguém.
Tais momentos de ira são pedaços de revolta passiva contra a mulher. É uma longa luta, esta. A raiva do Batola demora muito, cresce com o tempo, dura anos. Ela, silenciosa e distante, como se em nada reparasse, vai-lhe trocando as voltas. Desfaz compras, encomendas, negócios. Tudo vem a fazer-se como ela entende que deve ser feito. E assim tem governado a casa.
Batola vai ruminando a revolta sentado pelos caixotes. Chegam ocasiões em que nem pode encará-la. De olhos baixos, põe-se a beber de manhã à noite, solitário como um desgraçado. O fim daquelas crises tem dado que falar: já muitas vezes, de há trinta anos para cá, aconteceu a gente da aldeia ouvir gritos aflitivos para os lados da venda. Era o Batola, bêbado, a espancar a mulher.
Tirando isto, a vida do Batola é uma sonolência pegada. Agora, para ali está, diante do copo, matando o tempo com longos bocejos. No estio, então, o sol faz os dias do tamanho de meses. Sequer à noite virá alguém à venda palestrar um bocado. É sempre o mesmo. Os homens chegam com a noitinha, cansados da faina. Vão direito a casa e daí a pouco toda a aldeia dorme.

1º momento – Solidão – vida monótona e triste dos habitantes de Alcaria. Durante o dia, os homens trabalham e à noite dirigem-se para suas casas e dormem. Batola passa o dia sentado à espera de atender os poucos fregueses que se deslocam à sua venda.
Batola
Mulher do Batola
Rata,  amigo de Batola












Relação entre Batola e a mulher – relacionamento conflituoso: ela é ativa e dominadora quando tem de tomar decisões, já ele ostenta uma postura passiva, porém, quando está ébrio, é violento.
Batola sente-se inferiorizado em relação à mulher, já que é ela quem gere a casa e o negócio, o que lhe provoca uma revolta interior (por esse motivo é que já a agrediu).









Tempo psicológico – a solidão de Alcaria faz com que o tempo passe devagar.



Está nestes pensamentos o Batola quando, de súbito, lhe vem à ideia o velho Rata. Que belo companheiro! Pedia de monte a monte, chegava a ir a Ourique, a Castro, à Messejana. Até fora a Beja. Voltava cheio de novidades. Durante tardes inteiras, só de ouvi-lo parecia ao Batola que andava a viajar por todo aquele mundo.
Mas o velho Rata matara-se. Na aldeia, ninguém ainda atina ao certo com a razão que levou o mendigo a suicidar-se. Nos últimos tempos, o reumatismo tolhera-lhe as pernas, amarrando-o à porta do casebre. De quando em quando, o Batola matava-lhe a fome; mas nem trocavam uma palavra. Que sabia agora o Rata? Nada. Encostado à parede de pernas estendidas, errava o olhar enevoado pelos longes. Veio o verão com os dias enormes, a miséria cresceu. Uma tarde, lá se arrastou como pôde e atirou-se para dentro do pego da ribeira da Alcaria.
Aos poucos o tempo apagou a lembrança do Rata, o mendigo. Só o Batola o recorda lá de vez em quando. Mas, agora, abandonou a recordação e o vinho, e vai até ao almoço. Nunca bebe durante as refeições.
Depois, o sol desanda para trás da casa. Começa a acercar-se a tardinha. Batola, que acaba de dormir a sesta, já pode vir sentar-se, cá fora, no banco que corre ao longo da parede. A seus pés, passa o velho caminho que vem de Ourique e continua para o sul. Por cima, cruzam os fios da eletricidade que vão para Valmurado, uma tomada de corrente cai dos fios e entra, junto das telhas, para dentro da venda.
E o Batola, por mais que não queira, tem de olhar todos os dias o mesmo: aí umas quinze casinhas desgarradas e nuas; algumas só mostram o telhado escuro, de sumidas que estão no fundo dos córregos. Depois disso, para qualquer parte que volte os olhos, estende-se a solidão dos campos. E o silêncio. Um silêncio que caiu, estiraçado por vales e cabeços, e que dorme profundamente. Oh, que despropósito de plainos sem fim, todos de roda da aldeia, e desertos!
Carregado de tristeza, o entardecer demora anos. A noite vem de longe, cansada, tomba tão vagarosamente que o mundo parece que vai ficar para sempre naquela magoada penumbra.
Lá vêm figurinhas dobradas pelos atalhos, direito às casas tresmalhadas da aldeia. Nenhuma virá até à venda falar um bocado, desviar a atenção daquele poente dolorido. São ceifeiros, exaustos da faina, que recolhem. Breve, a aldeia ficará adormecida, afundada nas trevas. E António Barrasquinho, o Batola, não tem ninguém para conversar, não tem nada que fazer. Está preso e apagado no silêncio que o cerca.
Ergue-se pesadamente do banco. Olha uma última vez para a noite derramada. Leva as mãos à cara, esfrega-a, amachucando o nariz, os olhos. Fecha os punhos, começa a esticar os braços. E abre a boca num bocejo tão fundo, o corpo torcido numa tal ansiedade, que parece que todo ele se vai despegar aos bocados. Um suspiro estrangulado sai-lhe das entranhas e engrossa até se alongar, como um uivo de animal solitário.
Quando consegue dominar-se, entra na venda, arrastando os pés. E, sem pressentir que aquela noite é a véspera de um extraordinário acontecimento, lá se vai deitar o Batola, derrotado por mais um dia.
Espaço psicológico – a recordação que Batola faz do seu amigo Rata concretiza uma marca de espaço psicológico. O mendigo recordado por Batola era aquele que, por sair da aldeia, lhe trazia novidades, trazendo alguma alegria ao protagonista, o que comprova o seu apreço pela liberdade e mundo exterior. Esta aldeia faz com que Batola se sinta solitário, isolado de tudo, já que não estabelece convivência com os outros habitantes da aldeia






Espaço físico – pequena aldeia no baixo Alentejo, onde há poucas pessoas 



Hipálage
Personificação
Espaço sociopolítico – espaço socialmente e economicamente deprimido. Os homens trabalham na agricultura (trabalho árduo) e  a venda de Batola não é muito frequentada. Situação de miséria, vida precária que oprime os pequenos camponeses





Narrador que conhece o futuro (focalização omnisciente)



De facto, na tarde seguinte apareceu uma nuvenzinha de poeira para as bandas do sul: ouvia-se ronronar um motor. Pouco depois, o carro parou à porta da venda. Fazia anos que tal se não dava na aldeia. Pelas portas, apareceram mulheres e crianças.
Dois homens saíram do carro. Um deles trazia fato de ganga, o outro, bem vestido, adiantou-se até à porta:
Não nos pode dispensar uma bilha de água?
Batola, daí a pouco, sai com a infusa a escorrer. O do fato de ganga, que havia tirado a tampazinha da frente do carro, pôs-se a deitar a água para dentro. Enquanto isto acontece, o sujeito bem vestido dá uma mirada pela aldeia, pelos campos. Sopra, afogueado:
– Que sítio!...
Mas ao ver os fios da eletricidade e a ligação que entra junto das telhas da casa, olha para o Batola com atenção, medindo-o de alto a baixo. Entra na venda, põe-se a observar as prateleiras. O exame parece agradar-lhe. Volta-se, sorridente, para o Batola, que lhe segue, desconfiado, todos os movimentos:
Tem cerveja?
Ná. Só vinho...
Traga o vinho.
Muito instado, Batola bebe também. E aqui começa uma conversa que ele não entende. Só percebe, e isso agrada-lhe, que o homem é simpático e franco. Mas agora há uma pergunta a que tem de responder:
- Não, senhor...
O sujeito vai à porta, e diz para o motorista:
– Calcinhas, traz aí uma caixa do modelo pequeno.
A caixa é colocada sobre o balcão. De dentro sai uma outra caixa, mas de madeira polida. Ao meio tem um retângulo azul, cheio de letras e, em baixo, ao comprido, quatro grandes botões negros.
– Não tem uma tomada?
Em face da resposta, o homem vai ao automóvel. Volta e sobe ao balcão. Tira a lâmpada, enrosca aí a tomada, puxa o fio que sai da caixa, liga-o, e salta para o chão. Só nesse momento o Batola compreende. A princípio, apenas saem ruídos ásperos da caixinha, mas, aos poucos, desaparecem. Vem então uma música modulada, grave.
Hem? Que tal?
Esfregando as mãos, começa a enumerar rapidamente as qualidades de um tal aparelho:
É o último modelo chegado ao país. Quando se quer, é música toda a noite e todo o dia. Ou então canções. E fados e guitarradas! Notícias de todo o mundo, desde manhã até à noite, notícias da guerra!...
Aponta para o retângulo azul:
Olhe, aqui, é Londres; aqui, a Alemanha; aqui, a América. É simples: vai-se rodando este botãozinho...
Poisa a mão sobre o ombro do Batola, e exclama:
Dou-lhe a minha palavra de honra que não encontram nenhum aparelho pelo preço deste!
Sem dar tempo a qualquer resposta, ordena:
Traz a pasta, Calcinhas!
Vem a pasta. Batola, aturdido, olha para os papéis de várias cores que vão aparecendo sobre o balcão. A música, vibrante, enche a venda, ressoa pelos campos.
Aqui é Londres, hem! – grita o homem. – O senhor sabe ler? Então leia aqui!
Mostra os papéis, gesticula e sorri, sorri sempre. Batola coça o queixo com os dedos grossos. Olha as contas que o outro lhe mostra, olha de soslaio para a mulher. Volta a coçar-se. E tudo isto se repete durante uma longa hora.
Batola, por fim, cabisbaixo, emudece, como que vencido. Rapidamente, o vendedor preenche, sobre o balcão, um largo impresso e, depois, doze letras. São as prestações. Dá a caneta ao Batola que se põe a assinar penosamente papelinho a papelinho. Está quase a acabar a difícil tarefa quando a mulher o interrompe, numa voz lenta e carregada:
António, tu não compras isso.
Então, inicia-se uma luta entre o vendedor e a mulher. Mas as frases e o sorriso do homem bem vestido não surtem agora o mesmo efeito: vão-se sumindo, sem remédio, diante daquele rosto ossudo e decidido.
Ali, só há uma palavra:
– Não.
A cara redonda do Batola começa a encher-se de fundas rugas. Num repente, pega na caneta e assina o resto das letras:
– Pronto! Quem manda sou eu!
Os olhos da mulher trespassam-no. Volta o rosto pálido para o vendedor de telefonias, torna a voltar-se para o marido. Por momentos, parece alheada de tudo quanto a cerca. Vagarosa, no tom de quem acaba de tomar uma resolução inabalável, apruma-se, muito alta, dominadora, e diz:
António, se isso aqui ficar eu saio hoje mesmo de casa. Escolhe.
Toda a gente da aldeia que enche a venda sabe que ela fará o que acaba de dizer. Até o vendedor pressente que assim será. Pensativo, olha para o Batola. De súbito, tira um papel qualquer de dentro da pasta e adianta-se:
– Bem, a senhora não se exalte. Faz-se uma coisa: a telefonia fica à experiência, durante um mês. Se não quiserem, devolvem-na; nós devolvemos as letras. Assine aqui, Sr. Barrasquinho. Pronto. Agora já a senhora pode ficar descansada.
– Mas – pergunta ainda a mulher – quanto se paga de aluguer por esse mês?
– Nada! – responde o homem, de novo risonho. – Por isso não se paga nada!
E, ao meter os papéis dentro da pasta, repara que já é muito tarde.
Apressado, conta que veio por ali devido a um engano no caminho. Sai da venda, entra no carro, e diz ao Batola, aproveitando o ruído do motor:
– Você, agora, arrume a questão: tem um mês para a convencer.




















Relação entre as personagens:
Comerciante e Batola:
- o vendedor fala com Batola de forma descontraída, estabelece uma aproximação com ele, de modo a garantir a venda da telefonia
  



Recurso ao discurso direto:
- dá destaque à personagem – vendedor;
- o tempo da narração é equivalente ao tempo da ação = eficácia do discurso e modo como determina a decisão de Batola;
- imprime vivacidade  e verosimilhança ao texto narrativo










  
Relação entre as personagens:
Comerciante e a mulher de Batola:
- ao perceber a reação negativa da mulher de Batola, o vendedor dirige-se a ela de modo mais formal, pois percebe que ela é quem decide



Relação entre as personagens:
Batola e mulher:
- alteração no relacionamento do casal – Batola decide tomar uma decisão contrária à da mulher, desafiando-a. Esta situação coloca em causa a autoridade dela


Mal o carro parte, deixando uma nuvem de poeira à retaguarda, atira a pasta para o assento de trás, e grita alegremente:
– Hem, Calcinhas! Levou-me uma tarde inteira, mas foi. Foi de esticão!
De facto, era sol-posto, pelos atalhos, os ceifeiros recolhiam à aldeia.
            Mas, nessa tarde, vieram todos à venda, onde entraram com um olhar admirado. Uma voz forte, rápida, dava notícias da guerra.
Só de lá saíram depois de a voz se calar. Cearam à pressa, e voltaram. Era já alta noite quando recolheram a casa, discutindo ainda, pelas portas, numa grande animação.
Um sopro de vida paira agora sobre a aldeia. Todos sabem o que acontece fora dali. E sentem que não estão já tão distantes as suas pobres casas. Até as mulheres vêm para a venda depois da ceia. Há assuntos de sobra para conversar. E grandes silêncios quando aquela voz poderosa fala de cidades conquistadas, divisões vencidas, bombardeamentos, ofensivas. Também silêncio para ouvir as melodias que vêm de longe até à aldeia, e que são tão bonitas!...
Acontece até que, certa noite, se arma uma festa na venda do Batola. Até as velhas dançaram ao som da telefonia. Nos intervalos, os homens bebiam um copo, junto ao balcão, os pares namoravam-se, pelos cantos. Por  fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos.
– Ah! – grita de repente o Batola. – Se o Rata ouvisse estas coisas não se matava!
Mas ninguém o compreende, de absorvidos que estão.
E os dias passam agora rápidos para António Barrasquinho, o Batola. Até começou a levantar-se cedo e a aviar os fregueses de todas as manhãzinhas. Assim, pode continuar as conversas da véspera. Que o Batola é, de todos, o que mais vaticínios faz sobre as coisas da guerra. Muito antes do meio-dia já ele começa a consultar o velho relógio, preso por um fio de ouro ao colete.
a mulher quase deixou de aparecer na venda. E ninguém sabe que pensa ela do que contam as vozes desconhecidas aos homens da aldeia, pois, através do tabique de ripas separadas por grandes fendas, ouve-se tudo que se passa na venda. Ouve-se e vê-se, querendo, a alegria que certas notícias trazem aos ceifeiros, o gosto e o propósito que eles têm ao ouvir determinada voz que é de todas a mais desejada e acreditada.
E os dias custaram tão pouco a passar que o fim do mês caiu de surpresa em cima da aldeia da Alcaria. Era já no dia seguinte que a telefonia deixaria de ouvir-se. Iam todos, de novo, recuar para muito longe, lá para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido.
Foi a primeira noite em que os homens saíram da venda mudos e taciturnos. Fora esperava-os o negrume fechado. E eles voltavam para a escuridão, iam ser, outra vez, o rebanho que se levanta com o dia, lavra, cava a terra, ceifa e recolhe vergado pelo cansaço e pela noite. Mais nada que o abandono e a solidão. A esperança de melhor vida para todos, que a voz poderosa do homem desconhecido levava até à aldeia, apagava-se nessa noite para não mais se ouvir.
Dentro da venda, o Batola está tão desalentado como os ceifeiros. O mês passou de tal modo veloz que se esqueceu de preparar a mulher. Sobe ao balcão, desliga o  fio e arruma o aparelho. Um pouco dobrado sobre as pernas arqueadas, com o chapeirão a encher-lhe a cara de sombra, observa magoadamente a preciosa caixa.
Assim está, quando um pressentimento o obriga a voltar a cabeça: junto da porta que dá para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso. “Que terá acontecido?”, pensa o Batola, admirado de a ver ainda levantada àquela hora.
– António – murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. – Eu queria pedir-te uma coisa...
Suspenso, o homem aguarda. Então, ela desabafa, inclinando o rosto ossudo, onde os olhos negros brilham com uma quase expressão de ternura:
Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto.

2º momento – Convivialidade – após a chegada da telefonia, todos os habitantes dirigem-se, ao fim de um dia de trabalho, à venda de Batola, onde convivem e ouvem notícias e canções.

Sentimentos despertados pela telefonia junto dos habitantes da aldeia:
- o convívio entre os habitantes de Alcaria renasceu, motivo pelo qual o sentimento de isolamento se dissipou. A alegria voltou à aldeia e com ela a noção de passagem do tempo também se alterou – “os dias passam agora rápidos”
Repetição da preposição “até” reforça os acontecimentos pouco expectáveis fomentados pela presença da telefonia – as mulheres saem à noite para estarem na venda a conviver, as velhas dançam e o Batola tem vontade de trabalhar






Metáforas – salientam a constatação de que os habitantes voltariam a sentir o isolamento e a solidão que lhes eram característicos antes da chegada da telefonia. Mais uma vez, iriam sentir que estavam “muito longe”, no “fim do mundo” e que só lhes restava “o abandono e a solidão”




Atitude da mulher do Batola:
- com humildade, faz um pedido ao marido, mostrando estar em sintonia com ele, já que assume a importância da telefonia na vida deles e da aldeia


Função da peripécia inicial e final
·      Funções da peripécia inicial:
o   desencadear a ação (elemento que conduz à sucessão de peripécias que culminarão na peripécia final);
o   contribuir para a representação do espaço sociopolítico: a abordagem do vendedor evidencia o confronto de interesses e de posições sociais (entre os que têm e os que não têm) e realça o estatuto das classes populares (em que se inclui Batola) como vítimas da violência social.

·      Funções da peripécia final:
o  acontecimento imprevisível que altera o rumo dos acontecimentos (decisão de manter a telefonia, pois é uma “companhia” num espaço de solidão no microcosmos da aldeia). A decisão de manter a telefonia sugere a necessidade de convivialidade, de contacto com o exterior (contrariando o isolamento e a solidão anteriormente vividas), e de conhecimento da realidade sociopolítica; em última análise, sugere a pulsão libertadora e a possibilidade de emancipação face à opressão vivida (trata-se do germe de uma transformação).
  

Sequências

Sequência descritiva
Segmento textual
“Muito alta, grave, um rosto ossudo e um sossego de maneiras que se vê logo que é ela quem ali põe e dispõe.”
Fases/etapas
Apresentação da entidade a descrever (mulher de Batola), identificação e descrição das partes que constituem o todo (“Muito alta, grave”, “um sossego de maneiras”).
Marcas linguísticas nos exemplos dados
Nomes, adjetivos; recursos expressivos (metáfora).

Sequência dialogal
Segmento textual
“– Tem cerveja? [...] – Aqui é Londres, hem! – grita o homem. – O senhor sabe ler? Então leia aqui!”
Fases/etapas
Sequência de abertura (“– Tem cerveja?”), núcleo da interação (restantes falas).
Marcas linguísticas nos exemplos dado
Fórmula de abertura (“– Tem cerveja?”), formas de primeira e terceira pessoa (“Dou-lhe” – nota: tratamento pela terceira pessoa).

Sequência narrativa
Segmento textual
“Por  fim, mudou-se de posto para ouvir as notícias do mundo. Todos se quedaram, atentos.”
Fases/etapas
Avanço na ação, relato de uma sucessão de evento.
Marcas linguísticas nos exemplos dados
Pretérito Perfeito do Indicativo


Ideias-chave
·      Retrato económico e sociocultural do Alentejo na primeira metade do século XX;
·      O título do conto anuncia um novo meio de comunicação que vai mudar a vida de uma população deprimida, no contexto da II Guerra Mundial;
·      A intriga é simples e é contada de forma linear;
·      O espaço exterior representa os sentimentos negativos do protagonista;
·      O refúgio em comportamentos antissociais e a desistência da vida perpassam ao longo do conto, assim como as relações afetivas conturbadas;
·      O conto permite uma reflexão sobre a condição humana, que excede os limites temporais da ação.

Síntese

A intriga
·      Peripécia banal: um engano de percurso leva um vendedor a Alcaria.
·      Isolamento geográfico da aldeia e ausência de comunicação: abandono, solidão e desumanização da população.
·      Chegada do novo aparelho: a radiotelefonia.
·      Ligação ao mundo: música e notícias.
·      Alteração de comportamentos: devolução da humanidade.
O espaço
o   Aldeia de Alcaria: “quinze casinhas desgarradas e nuas”.
o   Estabelecimento do casal Barrasquinho: “a venda” é um local onde reina o desleixo.
o   “Fundos da casa”: espaço de habitação sombrio separado da venda.
o   Locais “longínquos” por onde viajava Rata: Ourique, Castro Marim, Beja.

O tempo
§  Tempo histórico: anos 40 do século XX (referência à eletricidade e à telefonia).
§  Passagem do tempo condensada: “há trinta anos para cá”, “todas as manhãzinhas”.
§  Tempo sintetizado: da chegada do vendedor à partida do vendedor e prazo de entrega do aparelho – um mês.



As personagens
¨ António Barrasquinho, o Batola: preguiçoso, improdutivo, sonolento, bêbado, bate na mulher. Tem nome e alcunha (típico no Alentejo). Usa uma indumentária própria do homem alentejano. A morte de Rata agudiza a sua solidão.
¨  A mulher do Batola: expedita, dominadora e trabalhadora. Não tem nome.
¨ Rata: companheiro de Batola, mendigo e viajante, é o mensageiro do exterior. Suicidou-se quando deixou de poder viajar.
¨ Caixeiro-viajante: vendedor de aparelhos radiofónicos, comerciante e amigo de vender.
¨ Homens de Alcaria: “figurinhas” metaforicamente aparentadas com gado.


O narrador
Þ  O narrador de terceira pessoa narra os acontecimentos, comenta, conhece o passado e o mundo interior das personagens (presença: não participante; ponto de vista: subjetivo; focalização: omnisciente)
Þ  O narrador centra a atenção do leitor no abandono e solidão sentidos pelos protagonista.
Þ  O narrador conhece os pensamentos de Batola e desvenda como se vão formando: o desgosto leva-o a fechar-se num mundo de evocações.

A atualidade
v Isolamento e falta de convivialidade.
v Relações entre homem e mulher.
v Vícios sociais: o alcoolismo, a violência doméstica.
v As inovações tecnológicas e alterações de hábitos sociais.



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