segunda-feira, 5 de março de 2018

Conto - "Famílias desavindas" de Mário de Carvalho

Mário de Carvalho -
“As famílias desavindas”

Linguagem, estilo e estrutura:
História pessoal e história social: as duas famílias.
Valor simbólico dos marcos históricos referidos.
A dimensão irónica do conto.

A importância dos episódios e da peripécia final.

O conto: unidade de ação; brevidade narrativa; concentração de tempo e espaço; número limitado de personagens;
A estrutura da obra;
Discurso direto e indireto;
Recursos expressivos.


Por uma dessas alongadas ruas do Porto, que sobe que sobe e não se acaba, há de encontrar-se um cruzamento alto, de esquinas de azulejo, janelas de guilhotina, telhados de ardósia em escama. Faltam razões para flanar por esta rua, banal e comprida, a não ser a curiosidade por um insólito dispositivo conhecido de poucos: os únicos semáforos do mundo movidos a pedal, sobreviventes a outros que ainda funcionavam na Guatemala, no início dos anos setenta.
No dobrar do século XIX, Gerard Letelessier, jovem engenheiro francês, fracassou em Paris e em Lisboa, antes de convencer um autarca do Porto de que inventara um semáforo moderno, operado a energia elétrica, capaz de bem ordenar o trânsito de carroças de vinho, carros de bois e landós da sociedade. A autoridade gostou do projeto e das garrafas de Bordéus que o jovem engenheiro oferecia. Os semáforos estiveram ensejados para a Ponte, mas, de proposta em proposta (sempre se tratava de uma implantação experimental), acabaram na infrequentada Rua Fernão Penteado, na interseção com a travessa de João Roiz de Castel-Branco.
O sistema é simples e, pode dizer-se com propriedade, luminoso. Um homem pedala numa bicicleta erguida a dez centímetros do chão por suportes de ferro. A corrente faz girar um imã dentro de uma bobina. A energia gerada vai acender as luzes de um semáforo, comutadas pelo ciclista. Durante a Primeira Guerra foi introduzida uma melhoria. Uma inspeção da Câmara concluiu que a roda da frente era destituída de utilidade. Foi retirada.
Houve muitos candidatos ao cargo de semaforeiro, embora um equívoco tivesse levado à exigência de que os concorrentes soubessem andar de bicicleta. A realidade corrigiu o dislate porque acabou por ser escolhido um galego chamado Ramon, que era familiar do proprietário dum bom restaurante e nunca tinha pedalado na vida*. Mas Ramon era esforçado, cheio de boa vontade. A escolha foi acertada.
Durante anos e anos o bom do Ramon pedalou e comutou. Por alturas da Segunda Grande Guerra foi substituído pelo seu filho Ximenez, pouco depois da revolução de Abril pelo neto Asdrúbal, e, um dia destes, pelo bisneto Paco. A administração continua a pagar um vencimento modesto, equivalente ao de jardineiro. Mas não é pelo ordenado que aquela família dá ao pedal. É pelo amor à profissão. Altas horas da madrugada, avô, neto e bisneto foram vistos de ferramenta em riste a afeiçoar pormenores. Fizeram questão de preservar a roda de trás e opuseram-se quase com selvajaria a um jovem engenheiro que considerou a roda dispensável, sugerindo que o carreto bastasse.
Os transeuntes e motoristas do Porto apreciam estes semáforos manuais, porque é sempre possível personalizar a relação com o sinal1. Diz-se, por exemplo, «Ó Paco, dá lá um jeitinho!» e o Paco, se estiver bem-disposto, comuta, facilita.
            Acontece que, mesmo à esquina, um primeiro andar vem sendo habitado por uma família de médicos que dali faz consultório. Pouco antes da instalação dos semáforos a pedal, veio morar o doutor João Pedro Bekett, pai de filhos e médico singular. Chegou de Coimbra com boa fama mas transbordava de espírito de missão. Andava pelas ruas a interpelar os transeuntes: «Está doente? Não? Tem a certeza? E essas olheiras, hã? Venha daí que eu trato-o.» E nesta ânsia de convencer atravessava muitas vezes a rua. O semáforo complicava. Aproximou-se do Ramon e bradou, severo: «A mim, ninguém me diz quando devo atravessar uma rua. Sou um cidadão livre e desimpedido.» Ramon entristeceu. Não gostava que interferissem com o seu trabalho e, daí por diante, passou a dificultar a passagem ao doutor. Era caso para inimizade. E eis duas famílias desavindas. Felizmente, nunca coincidiram descendentes casadoiros. Piora sempre os resultados.
Ao Dr. Pedro sucedeu o filho João, médico muito modesto. Informava sempre que o seu diagnóstico era provavelmente errado. Enganava-se, era um facto. Mas fazia questão de orientar os pacientes para um colega que desse uma segunda opinião. Herdou o ódio ao semáforo e passava grande parte do tempo à janela, a encandear Ximenez com um espelho colorido.
Já entre o jovem médico Paulo e Asdrúbal quase se chegou a vias de facto. O médico passava e rosnava «Sus, galego». E Asdrúbal, sem parar de dar ao pedal: «Xô, magarefe!» Uma tarde, Asdrúbal levantou mesmo a mão e o doutor encurvou-se e enrijou o passo.
Este Dr. Paulo era muito explicativo. Ouvia as queixas dos doentes, com impaciência, e depois impunha silêncio e começava:
— As doenças são provocadas por vírus ou por bactérias. No primeiro caso, chamam-se viróticas, no segundo, bacterianas.
E estava horas nisto, até o doente adormecer. Colegas maliciosos sustentavam que ele praticava a terapia do sono. Mas a maioria dos doentes gostava de ouvir explicar. Alguns até faziam perguntas. Após a consulta, muito à puridade, o Dr. Paulo pedia aos clientes que passassem pelo homem do semáforo e lhe dissessem: «Arrenego de ti, galego!» Isto foi assim com Asdrúbal e, mais recentemente, com Paco.
Há dias, vinha do almoço o Dr. Paulo com uma trouxa de ovos na mão, e já trazia entredentes o «arrenego!» com que insultaria o semaforeiro, quando aconteceu o acidente. Ao proceder a um roubo por esticão, um jovem que vinha de mota teve uns instantes de desequilíbrio, raspou por Paco e deixou-o estendido no asfalto. Era grave. O Dr. Paulo largou ódios velhos, não quis saber de mais nada e dobrou-se para o sinistrado:
— Isto, em matéria de lesões, elas podem ser provocadas por três espécies de instrumentos: contundentes, cortantes, ou perfurantes.
Uma ambulância levou o Paco antes que o doutor tivesse entrado no capítulo das «manchas de sangue»*.
Enganar-se-ia quem dissesse que o semáforo ficou abandonado. Uma figura de bata branca está todos os dias naquela rua, do nascer ao pôr do Sol, a acionar o dispositivo, pedalando, pedalando, até à exaustão. É o Dr. Paulo cheio de remorsos, que quer penitenciar-se, ser útil, enquanto o Paco não regressa.

Narração da origem dos semáforos e localização do aparelho – Introdução- contextualização relativa aos semáforos da rua Fernão Penteado







* Crítica à ação corrupta dos governantes




Descrição do equipamento dos semáforos e do seu funcionamento – Desenvolvimento – apresentação das personagens e narração das peripécias associadas à relação conturbada entre elas
Relato do processo de seleção do primeiro semaforeiro





Sumário relativo às pessoas que desempenharam o cargo de semaforeiro até ao presente da enunciação
Os marcos históricos legitimam a verosimilhança da narrativa e assinalam a passagem do tempo. Os conflitos referidos podem também remeter para a evolução da relação entre as famílias
Descrição da relação atual entre semaforeiro, motoristas e transeuntes


Apresentação do primeiro médico e da origem da discórdia com os semaforeiros
1crítica ao recurso ao favor/cunha











Exposição das relações conflituosas entre médicos e semaforeiros.

Os semaforeiros estão ligados pelo “amor à profissão”, partilham as mesmas características, atuam do mesmo modo, sem especificidades individuais.

Os médicos estão ligados pelo “ódio ao semáforo” e são as suas particularidades que desencadeiam e perpetuam o conflito

*Caracterização humorística da personagem (discurso indireto)





Narração do acidente e da reconciliação das “famílias desavindas”
Discurso direto – nem sempre surge em forma de diálogo, mas sim como uma reprodução de uma fala que caracteriza indiretamente as personagens (graficamente, o discurso direto é apresentado de duas formas)



– Conclusão – desfecho inusitado da história: a reconciliação das famílias.

Os episódios relatados ilustram a origem dos conflitos entre semaforeiros e médicos, sendo que a peripécia final dá a conhecer a reconciliação entre estas famílias através da atuação do Dr. Paulo que acaba com a quezília.

Ideias-chave
·      O conto apresenta marcos históricos temporais que constituem eventos marcantes da nossa cultura (dois conflitos mundiais e a revolução do 25 de abril de 1974);
·      A intriga estabelece um paralelo entre dois grupos sociais que se opõem em cada um dos marcos históricos (exploração das relações humanas, relações ibéricas e estereótipos sociais);
·      Os diversos semaforeiros constituem uma personagem coletiva que se caracteriza pelo amor incondicional aos semáforos (“pelo amor à profissão”);
·      O texto fixa breves episódios que marcam o confronto entre médicos e semaforeiros;
·      O narrador recorre, frequentemente, à paródia, apostando na inversão irónica de códigos e de convenções com distanciamento crítico;
·      O inusitado início transfigura-se na conclusão do conto: o acidente propicia a reconciliação das duas famílias.



Síntese

A intriga
·      Peripécia banal: um invento insólito e “provisório” nas ruas labirínticas da cidade do Porto.
·      Retrospetiva do cargo “hereditário” de semaforeiro até à atualidade
·      Acontecimento imprevisto: acidente de Paco
·      Conclusão inusitada
O espaço
o   Alusões à cidade do Porto: “Rua Fernão Penteado, na interseção com a travessa de João Roiz de Castel Branco”

O tempo
§  Tempo histórico: desde o século XIX, período entre a I e a II Guerras Mundiais até à atualidade: “pouco depois da revolução de abril”
§  Passagem do tempo condensada: “durante anos e anos”
§  Tempo sintetizado: do século XIX ao século XXI



As personagens
¨ Gerard Letelessier: engenheiro francês fracassado tem sucesso no Porto com uma invenção inútil.
¨ Um autarca do Porto: símbolo de todos os autarcas da província; deslumbrado por um projeto estrangeiro.
¨ Os transeuntes e motoristas do Porto: representantes do gosto pelo facilitismo.
¨ Ramon: primeiro semaforeiro; pertence à geração da I Guerra Mundial.
¨ Dr. João Pedro Beckett: “pai de filhos e médico singular” com elevado “espírito de missão”.
¨ Ximenez: filho de Ramon, segundo semaforeiro, pertencente à geração da II Guerra Mundial.
¨ Dr. João: é um “médico muito modesto”.
¨ Asdrúbal: filho de Ximenez, terceiro semaforeiro, pertencente à geração de 1974.
¨ Dr. Paulo: médico filho do Dr. João, adormecia os doentes com explicações.
¨ Paco: bisneto de Ramon, quarto semaforeiro, pertence à geração do início do século XXI; sofre um acidente.
¨ Dr. Paulo: assume o posto de Paco para se redimir.


O narrador
Þ  O narrador de terceira pessoa narra os acontecimentos, comenta, conhece o passado e o mundo interior das personagens (presença: não participante; ponto de vista: subjetivo; focalização: omnisciente)
Þ  Retoma o passado para criticar o presente.
Þ  Centra a atenção do leitor no quotidiano insólito.
Þ  Parodia, de forma irónica, atitudes e comportamentos banais da sociedade portuguesa atual, mas que se arrastam no tempo.

Dimensão paródica: a atualidade da ironia
v O provincianismo português.
v As invenções inúteis.
v A atribuição duvidosa de cargos públicos.
v O deslumbramento nacional pelo estrangeiro.
v As relações ibéricas.
v As relações humanas.
v Os estereótipos sociais.


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